O skatista brasileiro Laurence Reali faleceu na noite de ontem, vítima de um acidente de moto. O skate do brasil perdeu não apenas um profissional, mas um ser humano surpreendente, carismático e humilde. Valeu "Toco", por tudo que ensinou para o skatistas nessa sua passagem pela terra.
Segue abaixo uma entrevista feita em 2008 para a revista 100% Skate:
LAURENCE REALI - OLHO NO OLHO
“Aprendi que devo conversar sempre com olho no olho. É onde você se mostra por inteiro. A pessoa se entrega pelos olhos”
Dizem que os olhos são a janela da alma. Laurence Reali sabe muito bem disso, e adota a filosofia do olho no olho como única maneira de diferenciar falsidade de sinceridade. Não é mera retórica: em uma hora de entrevista, tudo o que ele disse foi olhando fixamente nos meus olhos. O skatista de Guarulhos (SP) concilia talento e humildade na construção da sua trajetória, marcada por imagens de impacto, com notória predileção por encarar picos altos.
Ciente do seu papel como skatista profissional, enche a boca para falar das obrigações que a carreira exige. A principal delas: transmitir uma boa imagem do Skate, principalmente para os leigos. Abraça a causa sem titubear, com a mesma convicção que o levou, ainda adolescente, a pedir demissão de um trabalho e dizer “daqui pra frente, meu serviço é o skate”. E não tenham dúvidas: disse isso olhando nos olhos.
Laurence Reali Rodrigues,
24 anos,
12 de skate,
Guarulhos (SP),
Patrocínios: Lost e Fire.
Qual foi o melhor momento na sua vida de skatista?
Toda vez que consigo executar uma manobra num pico que estou olhando faz tempo. Vou lá e não consigo voltar a manobra, ou vejo que é muito difícil e decido treinar mais (a manobra), para chegar bem mais preparado. São em momentos como esse que eu me realizo como skatista.
Mas se tivesse que falar em apenas um momento...
Aqui na minha entrevista tem uma borda de 17 (degraus), que desde moleque eu passo por ela e digo “essa borda dá pra descer”. A calçada de cima é muito ruim, a volta é muito crespa, mas mesmo assim dizia: “ainda vou tentar descer essa borda”. Agora, nesse ano, fui bem mais preparado mentalmente e desci a borda de boa. Foi uma realização como skatista.
Pensando no futuro, o que você projeta como um momento ainda melhor que esse?
Minha vontade é viajar bastante pra coletar imagens. Quero andar de skate na Europa e fazer um trabalho legal como o que já venho fazendo nas ruas do Brasil. Essa é a minha próxima meta: andar de skate fora do país.
No seu promo, você diz que força de vontade e “não ter limites” são as chaves para ser um bom skatista. O que mais?
Paciência, muita determinação, força de vontade. Porque não é fácil, não dá pra aprender manobras do dia pra noite. É preciso calma. Têm aquelas manobras que te atraem mais, e aí você vai treinando, até aperfeiçoá-las. Ninguém nasceu sabendo. É definir as coisas que você mais gosta e ir em busca delas. Pra mim skate é isso.
Falando novamente do seu promo: você diz que o skatista ou será técnico ou será agressivo, e que o skatista técnico tem a vantagem de expandir sempre. Isso significa que o skatista agressivo não evolui da mesma maneira?
Não, pelo contrário, os dois evoluem. O cara agressivo escolhe lugares mais de impacto: ele não vai dar uma manobra tão difícil, mas ele vai andar num pico difícil. Já o cara técnico tem mais opções de manobra, mesmo que ele demore pra acertar a manobra. Pra mim, ser técnico é mais vantajoso porque me dá mais prazer, fico ali tentando, e quando acerto é aquela sensação de “nunca pensei que ia voltar essa manobra”. Mas acertei, e pareceu ser fácil. As manobras têm que parecer fáceis, não adianta só acertar. Tem que fazê-la ficar bonita.
Do jeito que você definiu, descer uma borda de 17 de noseslide é típico de um skatista agressivo...
Com certeza. Como eu estava fazendo fotos pra minha entrevista, tentei mostrar algumas coisas agressivas, que já estava guardando, e misturar com meu lado técnico. Um skatista completo tem que mesclar agressividade e técnica. Pra ser um skatista profissional, influenciar a molecada, tem que ser um cara que anda em transição, na rua, pista, sempre com o skate no pé, andando constantemente. É mostrar sua evolução como skatista. Quando vou a algum lugar, as pessoas estão esperando alguma coisa de mim. São pessoas que não andam comigo no dia-a-dia, mas me acompanham pela mídia. E elas vão tirar opinião daquele momento, quando estiverem me vendo ao vivo. A opinião será formada na hora. Aí eu penso: “se eu andar pouco agora, é o que vou deixar de imagem nesse lugar. E se eu andar bem, quando voltar vão esperar ainda mais de mim”. Então eu prefiro andar de skate, prazerosamente, ao invés de ficar fazendo “naipe”. É fundamental transparecer que tenho skate no pé, pois sou um skatista profissional.
Você é profissional há quatro anos. Como você analisa seu amadurecimento como Pro?
Quando eu ainda era iniciante, já andava com uma galera que era profissional. Eu morava em Guarulhos (SP) e conheci o Marquinhos e o James BamBam, que era Pro e já tinha uma influência no meio do Skate. Ele conhecia muita gente, e os amigos dele iam pra Guarulhos andar e também faziam amizade comigo. Conheci o Mamá, o Dandi, o Gordo, o Alex Carolino, etc. Depois, quando trombava esses caras nos eventos, eles vinham e trocavam idéia, afinal eles eram amigos do meu amigo. Isso foi uma vantagem no meu amadurecimento, pois via a postura dos caras, o modo como eles tratavam as pessoas. Percebi que tratar bem as pessoas era fundamental.
Daí eu entrei na Drop Shoes, e eles me colocaram nas turnês da marca, mesmo sendo amador. Na época poucas pessoas tinham essa oportunidade: ser amador e viajar para eventos junto com os profissionais.
Aí você teve a oportunidade de andar junto com o Gugu, Wagner Ramos, etc. Isso despertou seu interesse pelas transições?
Eu já gostava de andar em transição, mas não tinha muita oportunidade de mostrar esse meu lado. Como só apareciam coisas minhas na rua, as pessoas criaram essa imagem: “o cara é muito da rua”. Só que gosto pra caramba de andar em minirrampa e transições. Nessas turnês rolavam muitas demos em minirrampas, bowls, e os caras andavam muito em transições. Eu achei legal, era minha chance de aprender mais, pois eu já gostava, só não tinha tanta base quanto eles. Aí eu voltava pra casa, andava com meus amigos do street, mas falava: “à noite vamos pra minirrampa”. E levava meus amigos do street pra aprender a andar em minirrampa. Quando eu voltava pra andar com a equipe nas turnês, já estava andando melhor, e o Wagner (Ramos) falava “nossa Laurence, não acredito que você está acertando isso!”
Eles também te davam conselhos sobre campeonatos?
Quando era amador eu nunca fazia linha de campeonato, mas mesmo assim me dava bem. Quando passei pra Pro, foi o contrário. Dividia o quarto no hotel com o Wagner e nós combinávamos de entrar no campeonato com uma linha feita, pois sabíamos que se não fizéssemos isso os caras iam nos “fritar”. Aí nós elaborávamos as linhas, e às vezes um montava a linha do outro. Tanto o Wagner, quanto o Gugu, o Gordo, mesmo sem eu pedir, automaticamente eles já me davam uns toques. E eu, como bom malandro, já assimilava rapidinho. E assim eu aprendi a ser um skatista mais completo. Gosto de andar em campeonatos, gosto de andar em transição, gosto de andar na rua, que é o que faço de melhor. Andar na rua é sentir-se livre em meio a uma selva de pedra. Pegar o skate, sair remando no meio dos carros, no corredor junto com os motoqueiros, e as pessoas sem entender nada. Eu olho pra trás, dou risada e vivo minha vida como skatista.
Além de andar bem, quais outras atitudes são importantes pra um profissional?
Tem que tratar as pessoas bem e incentivar o próximo a querer andar de skate. Sabe aquele tiozinho que fala mal de Skate? Tem que colocar um ponto positivo na cabeça dele, para que ele fique refletindo: “aquele menino tem razão, o skate não é uma coisa de maloqueiro, é um esporte valorizado, com futuro”. E temos que incentivar os menores, pois eles são o nosso futuro. Num campeonato, eles com certeza vão perguntar algumas coisas, e tenho que dar uns toques, por menores que sejam. Até pelo respeito ao ser humano. O mínimo que se pede de um skatista é passar uma boa imagem do skate. Passar o skate pro próximo, e passar bem passado!
É comum o discurso da importância da humildade, e já li você mesmo falando sobre isso. Como você transmite humildade pro seu fã?
A humildade só é transmitida através dos olhos mesmo. Eu aprendi que devo conversar sempre com olho no olho. É onde você se mostra por inteiro. Se você demonstrar medo, a pessoa vai perceber. Se você demonstrar coragem, ela também verá nos seus olhos. A pessoa se entrega pelos olhos. Pra diferenciar os falsos dos sinceros, tem que prestar atenção nos olhos. E isso eu faço com o público do skate, olhando no olho mesmo, pra que tenham certeza que estou falando a verdade.
Você tem o seu sobrenome tatuado no peito. Como é a relação com sua família?
Quando eu tinha 15 anos meus pais se separaram. Mas antes disso, minha casa sempre foi um lugar cheio de pessoas. Meu pai, minha mãe, minha irmã, e eles sempre recebiam muitos amigos, além dos meus amigos também. Era uma família muito ativa. Um dia eu estava voltando do colégio e minha mãe estava indo embora. Fiquei sem saber o que fazer. Falei pra ela: “mãe, vou ficar em casa, não sei pra onde você está indo”. Na hora nós conversamos por cima, e só depois ela me explicou o que estava acontecendo. Eu não quis questionar ninguém, nem meu pai, nem minha mãe. Cada um sabe o que faz e nada é por acaso. Enfim, escolhi ficar com meu pai, na casa onde sempre morei. Minha irmã casou e também saiu de casa. Ficamos eu e meu pai. E foi muito bom, pois na infância não me dava bem com ele... Meu pai bebia muito... Nessa época eu estava viajando muito para os campeonatos amadores e tal, e passava muito tempo longe de casa. Quando voltava, muitas vezes vi meu pai passando mal, e tive que correr com ele pro hospital. Foi aí que comecei a me preocupar mais com meu pai, e ele também começou a perguntar das minhas coisas. Hoje em dia nós conversamos muito mais, ele está parando de beber. Meu pai é ourives, tem um dom: ele consegue fazer qualquer tipo de jóia. Pode escolher o anel mais “encanado”, ele faz! Na época da separação ele deixou tudo de lado, mas hoje está voltando a trabalhar melhor. Se a separação causou essa frustração nele, por outro lado nos aproximou, como pai e filho.
Vejo muito pouco minha mãe. Ela mora no interior. Minha família é meu pai e eu. Ando de skate, o skate me sustenta, e hoje em dia o sustenta também. É isso: minha família é meu pai, minha mina e as pessoas que acreditam no meu potencial.
Você teve algum outro trabalho além do skate?
Eu sempre fui um moleque agilizado. No começo, andava com o skate emprestado dos camaradas. Minha mãe, vendo meu interesse, comprou um skate pra mim. Na mesma semana um ônibus quebrou esse skate. Eu não poderia pedir mais 100 reais pra minha mãe, então arrumei um trampo. Falei com um mecânico, amigo do meu pai, e trampei dois meses com isso. Lavava peças, auxiliava o Elias (mecânico), prestava atenção e aprendia. Foi lá também que aprendi a dirigir: ficava brincando com os carros dos clientes, quando eles iam almoçar (risos). Peguei gosto pela coisa. Se não fosse skatista profissional, queria trabalhar na área de mecânica. No final de dois meses, peguei o dinheiro e comprei um skate novo. Agradeci o Elias, disse que não precisava mais do serviço. Dali pra cá, meu serviço é o skate.
Antes do skate, você praticava esportes?
Joguei futebol de salão e campo. Mas comecei a procurar esportes individuais. Fiz vários tipos de esportes na escola: atletismo, ginástica olímpica, tênis de mesa, etc. Eu tinha um bom conceito na escola por causa disso, apesar de ser bagunceiro. A Diretora gostava de mim porque eu trazia várias medalhas pra escola. Mas continuei procurando outro esporte individual, que dependesse totalmente de mim, em todos os sentidos. Tinha que ser um esporte único. E quando conheci o skate, falei: “é o meu esporte”.
O que você acha que pode ser feito para tornar o Skate no Brasil ainda melhor?
As empresas têm que valorizar mais seus atletas. E os skatistas têm que se valorizar mais também. Tem skatista que não se valoriza, que se vende por muito pouco. Entra na marca mesmo sabendo que vai ganhar pouco, sendo que a marca tem muita grana. Se não tivesse nenhum skatista que aceitasse ganhar pouco, as marcas teriam que pagar melhor. Porque uma marca sem o skatista não é uma marca de skate. Quem faz a marca é o skatista. É o espelho, o marketing, o principal é o skatista. Não adianta ter uma marca e não ter quem a represente, ter só roupa pra vender, mesmo que sejam produtos bons. Tem que ter um skatista pra representar bem.
Você construiu uma imagem de skatista que gosta de manobrar em obstáculos altos. Como nasceu isso?
Eu via os vídeos e os caras andavam em picos altos. Era um incentivo pra tentar também. Eu treinava muito ollie. Além disso, moro em Guarulhos, área do Marcos Morto, que tem um ollie gigantesco. Andava com ele, quando ainda era bem moleque, e ficava vendo ele dar ollies muito altos. O BamBam também, o ollie de switch dele é mais alto que o da base. E como eu andava com eles, isso puxou minha evolução, tinha que treinar também, porque queria andar nos mesmos picos que eles. Aí o Cezar Gordo “pé de mola” também colava na área, e sempre fazia alguma manobra que eu nunca tinha visto. E eu falava “nossa, que manobra da hora”. Quando ele voltava, eu já estava dando a manobra dele. Esse foi o começo da evolução. Via os caras dando as manobras e tentava também. E assim aprendi a andar em lugares altos.
Está filmando pra algum vídeo?
Comprei uma filmadora, e agora filmo tudo o que faço. Tenho várias imagens registradas, e como é uma filmadora boa, tenho condição de passar imagens pra alguém que esteja editando um vídeo. Se a pessoa se interessar, pode usar. Assim não preciso ficar saindo de imediato, fazendo as coisas em cima da hora. Mas também curto muito sair pra filmar com os videomakers profissionais, até porque assim aprendo com eles.
O circuito Pro começa esse final de semana, com o campeonato de Madre de Deus. Por que você não está lá?
Eu até gostaria de estar lá, mas como estou fazendo a matéria pra revista, tenho andado em picos difíceis, que me obrigam a ficar descansando três dias depois de uma sessão, com muita dor muscular. São picos que tenho que ir totalmente focado, pra evitar o erro. Skate é certeza! Ainda mais quando vou andar na rua... Não tem preliminar pra aquecer, é agora! Teve picos que achei que seria fácil e foram bem difíceis. Já a borda do noseslide, fiquei de boa, no outro dia estava pronto pra outra. Mas, em compensação, teve uma semana que tomei um “capote”, levei uns pontos na cabeça e fiquei uma semana sem andar. Enfim, compensa mais fazer uma matéria pra revista, completa, com skate legal, do que ir numa competição e andar um minuto.
Quais os planos pra 2009?
Pretendo conseguir mais patrocínios, para conseguir mais material e assim andar ainda mais de skate. Material é essencial pro skatista. Quero também evoluir mais como skatista e como ser humano.
Matéria publicada na CemporcentoSKATE # 01 - ANO 14 em 2009.